Por: Marcos Paulo de Souza Miranda
- Uai, que trem bão é esse ?
- Ué, é queijo, sô!
Um colóquio de conteúdo como
o acima transcrito seria coisa por demais comum nas Minas Gerais, estado
notoriamente conhecido pelo falar peculiar de seu povo, a ponto de já existirem
no mercado editorial do país alguns Dicionários de Mineirês[1], que
revelam o significado de palavras e expressões tais como: arreda, cascar fora, fingir
de égua, tem base, entre muitas outras.
Mas verdadeiro signo
identificador do vocabulário mineiro é a palavra “uai”, que, pelo seu uso
reiterado, sempre desperta a curiosidade dos forasteiros, e estes, ao
indagarem o significado da expressão aos naturais da terra, não raras vezes
recebem como resposta: “uai é uai, uai !”
Outras
palavras que figuram como contumazes companheiras de “uai” são “ué” e “trem”,
que formam uma das mais tradicionais tríades cristalizadas no linguajar
montanhês.
Mas onde estariam as origens
históricas dessas palavras ? Seriam heranças linguísticas deixadas pelos
antigos povoadores ou criação recente dos nativos das Minas ?
Vejamos.
Sobre “uai” são várias as
especulações a respeito da palavrinha usada para exprimir espanto, surpresa,
admiração, dúvida, impaciência; como um recurso para retardar a resposta, marcando um tempo para
reflexão, e mesmo para reforçar o que foi dito anteriormente,
como se se estranhasse a dúvida do interlocutor, afinal de contas mineiro não é homem de duas
palavras, uai !
Uma
hipótese já levantada como possível origem da interjeição "uai" é que
ela seria uma transposição do inglês "why" (por que) para o
português, como consequência do contato dos mineiros com os imigrantes
ingleses, no século XIX, tendo começado em Nova Lima, com a ida de
trabalhadores para a Mina de Morro Velho, por volta de 1834
Contudo,
a presença de ingleses em Minas Gerais se deu em poucas regiões e em tempos
mais recentes, quando as Minas Gerais já eram conhecidas e habitadas há
mais de um século, com um vocabulário local bem assentado. Ademais, nem sempre
faz sentido trocar “uai” por “por quê”, constatação que enfraquece a tese do
empréstimo lexical oriundo da língua de Shakespeare.
Em razão
da existência de uma serra com a denominação de “Uaimi-i” na região de Ouro
Preto, chegamos a aventar a possibilidade da origem indígena da expressão
"uai", hipótese que descartamos logo ao constatarmos que se tratava
de uma mutação da expressão Guaicuy ( ou Gwaimi-y, que, não por acaso, passa no sopé da serra a que nos referimos.
Recentemente
aprofundamos nossas pesquisas nos antigos falares do Reino de Portugal, onde
encontramos pistas que parecem nos ajudar a compreender a origem da tradicional
tríade à qual nos referimos acima.
No
Dicionário de Falares dos Açores[4], para
nossa surpresa, logramos encontrar o verbete “uai” que, segundo o
autor, constitui uma interjeição com significado de exclamação de
espanto, estando presente, inclusive, na obra denominada Pastorais do Mosteiro,
de autoria do Padre Nunes da Rosa, onde se lê: “Uai! Uai! Louvado seja
Deus!”.
Já para o
“ué”, encontramos o verbete assimilado “uei”, como uma exclamação
característica da Ilha das Flores, também usada na Ilha do Corvo, com o
sentido de “Oh!”, podendo exprimir um reforço do que vem a seguir (Uei sim! =
claro, certamente), além de indignação (Uei homem !). Segundo o autor, a região
do Douro, em Portugal continental, também faz uso da referida interjeição.
Vale
destacar que, na primeira metade do século XVIII, do Arquipélago dos Açores
(constituído por nove ilhas e, ainda hoje, possessão portuguesa) vieram
muitos milhares de imigrantes para as Minas Gerais, em razão das
fabulosas notícias que lá chegavam sobre o ouro que aqui abundava. Boa
parte dos açorianos acabou se fixando nas regiões do Sul de Minas, Zona da Mata
e Campo das Vertentes, constituindo um dos principais troncos genealógicos da
antiga Comarca do Rio das Mortes, sediada na Vila de São João del-Rei.
O
encontro das expressões “uai” e “uei” no vetusto vocabulário açoriano, de onde
proveio grande parte dos primeiros povoadores de Minas Gerais, nos faz
crer que esteja naquele arquipélago as origens dessas palavras hoje
cristalizadas no vocabulário do povo mineiro.
Já no que
diz respeito à palavra “trem”, segundo o jocoso Dicionário Mineirês, de Paulo
Araújo, para os mineiros tal palavra pode significar absolutamente qualquer
coisa, incluindo objetos (v.g., Pode trazer aquele trem ali para mim?) ou
comida (v.g., Estou com vontade de comer um trem doce hoje).
Fato é que no falar mineiro a palavra trem é
polissêmica e não guarda, necessariamente, correspondência com o trem de ferro,
que chegou às Minas somente na segunda metade do século XIX, quando nosso
vocabulário já estava bastante sedimentado.
Em nossas
pesquisas fomos buscar o seu significado em um dicionário português publicado
em Lisboa no ano de 1789[5], onde
aparece o verbete “trem” com o significado de “a bagagem que acompanha alguém
de jornada”.
Também descobrimos um documento escrito por volta de 1750 pelo bandeirante Bento Fernandes Furtado em que ele narra a chegada, na região de Ouro Preto, dos primeiros aventureiros em busca do ouro, afirmando que a maior parte deles eram pobres e vinham sós, "com o seu limitado trem às costas"6, o que demonstra o uso da palavra "trem" nas Minas desde a sua descoberta.
Ou seja, trem, para os antigos portugueses, compreendia todas as coisas que eram levadas na bagagem dos viajantes (o que, aparentemente, inclusive explica o uso da expressão "trenheira" pelos mineiros, com o significado de “montoeira de coisas”).
Bandeirante com um trem a tiracolo
Assim, descoberta sua origem, fica explicado etimologicamente que trem significa coisa, ou seja, quase tudo o que existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea, o que justifica a sua larga utilização.
Depreende-se de tais
assertivas que, longe de serem expressões caipiras ou incultas cunhadas em
tempos recentes, as tradicionais e singulares palavras uai, ué e trem possuem
suas origens nos antigos falares portugueses, o que demonstra que os mineiros
souberam preservar, de forma particular, a autenticidade das heranças
linguísticas recebidas de seus ancestrais e que hoje podem ser
consideradas integrantes do patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais.
[1] MOTA,
Carlos. Dicionário Fanadês, Jequitinhonhês e Mineirês. Stephanie. 2008.
ARAÚJO, Pedro. Dicionário de Mineirês. Belo Horizonte: Tumate Cru. 2024.
FERNANDES, Elmo. Dicionário Mineirês Descomplicado. 2024.
[2] ALBUQUERQUE,
Iara Maria Barbosa Lages. Hipóteses sobre a origem de uma expressão. In:
RAMOS, Jânia M. COELHO, Sueli Maria (Org.). Português brasileiro dialetal:
temas gramaticais. Campinas: Mercado de Letras. 2013. p. 11-19.
[3] Em
tupi-guarani, “gwaimi” quer dizer “velha” e “i” final significa “rio”.
[4] BARCELOS,
J. M. Soares de. Dicionário de Falares dos Açores. Vocabulário regional
de todas as ilhas. Coimbra: Almedina. 2008. p. 567.
[5] Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre
D. Rafael Bluteau / reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva
natural do Rio de Janeiro. - Lisboa: na officina de Simão Thaddeo Ferreira,
1789.
[6] MATOSO,
Caetano da Costa. Códice Costa
Matoso. Coleção das notícias dos
primeiros descobrimentos das minas na América. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro. 1999. Vol. I, p. 185.