sábado, 16 de março de 2024

UAI, UÉ ! DE ONDE QUE O TREM É ? - Possíveis origens históricas de alguns falares mineiros

 


Por: Marcos Paulo de Souza Miranda

 

 

            - Uai, que trem bão é esse ?

            - Ué, é queijo, sô!

 

Um colóquio de conteúdo como o acima transcrito seria  coisa por demais comum nas Minas Gerais, estado notoriamente conhecido pelo falar peculiar de seu povo, a ponto de já existirem no mercado editorial do país alguns Dicionários de Mineirês[1], que revelam o significado de palavras e expressões tais como: arreda, cascar fora, fingir de égua, tem base,  entre muitas outras.

Mas verdadeiro signo identificador do vocabulário mineiro é a palavra “uai”, que, pelo seu uso reiterado, sempre desperta a curiosidade dos forasteiros, e estes,  ao indagarem o significado da expressão aos naturais da terra, não raras vezes recebem como resposta:   “uai é uai, uai !”




Outras palavras que figuram como contumazes companheiras de “uai” são “ué” e “trem”, que formam uma das mais tradicionais tríades cristalizadas no linguajar montanhês.

Mas onde estariam as origens  históricas dessas palavras ? Seriam heranças linguísticas deixadas pelos antigos  povoadores ou criação recente  dos nativos das Minas ?

Vejamos.

Sobre “uai” são várias as especulações a respeito da palavrinha usada para exprimir espanto,  surpresa, admiração, dúvida,  impaciência; como um recurso para retardar a resposta, marcando um tempo para reflexão,  e mesmo para reforçar o que foi dito anteriormente, como se se estranhasse a dúvida do interlocutor, afinal de contas mineiro não é homem de duas palavras, uai !

Uma hipótese já levantada como possível origem da interjeição "uai" é que ela seria uma transposição do inglês "why" (por que) para o português, como consequência do contato dos mineiros com os imigrantes ingleses, no século XIX, tendo começado em Nova Lima, com a ida de trabalhadores para a Mina de Morro Velho, por volta de 1834

Contudo, a presença de ingleses em Minas Gerais se deu em poucas regiões e em tempos mais recentes, quando as Minas Gerais  já eram conhecidas e habitadas há mais de um século, com um vocabulário local bem assentado. Ademais, nem sempre faz sentido trocar “uai” por “por quê”, constatação que enfraquece a tese do empréstimo lexical oriundo da língua de Shakespeare.

Em razão da existência de uma serra com a denominação de “Uaimi-i” na região de Ouro Preto, chegamos a aventar a possibilidade da origem indígena da expressão "uai", hipótese que descartamos logo ao constatarmos que se tratava de uma mutação da expressão Guaicuy ( ou Gwaimi-y, que, não por acaso, passa no sopé da serra a que nos referimos.

Recentemente aprofundamos nossas pesquisas nos antigos falares do Reino de Portugal, onde encontramos pistas que parecem nos ajudar a compreender a origem da tradicional tríade à qual nos referimos acima.

No Dicionário de Falares dos Açores[4], para nossa surpresa, logramos encontrar  o verbete “uai” que, segundo o autor,  constitui uma interjeição com significado de exclamação de espanto, estando presente, inclusive, na obra denominada Pastorais do Mosteiro, de autoria do Padre Nunes da Rosa, onde se lê: “Uai! Uai! Louvado seja Deus!”.

Já para o “ué”, encontramos o verbete assimilado “uei”, como uma exclamação característica da Ilha das Flores, também usada na Ilha do Corvo,  com o sentido de “Oh!”, podendo exprimir um reforço do que vem a seguir (Uei sim! = claro, certamente), além de indignação (Uei homem !). Segundo o autor, a região do Douro, em Portugal continental, também faz uso da referida interjeição.

Vale destacar que, na primeira metade do século XVIII, do Arquipélago dos Açores (constituído por nove ilhas e, ainda hoje, possessão portuguesa)  vieram  muitos milhares de imigrantes para as Minas Gerais, em razão das fabulosas notícias que lá chegavam sobre o ouro  que aqui abundava. Boa parte dos açorianos acabou se fixando nas regiões do Sul de Minas, Zona da Mata e Campo das Vertentes, constituindo um dos principais troncos genealógicos da antiga Comarca do Rio das Mortes, sediada na Vila de São João del-Rei.

O encontro das expressões “uai” e “uei” no vetusto vocabulário açoriano, de onde proveio grande  parte dos primeiros povoadores de Minas Gerais, nos faz crer que esteja naquele arquipélago as origens dessas palavras hoje cristalizadas no vocabulário do povo mineiro.

Já no que diz respeito à palavra “trem”, segundo o jocoso Dicionário Mineirês, de Paulo Araújo, para os mineiros tal palavra pode significar absolutamente qualquer coisa, incluindo objetos (v.g., Pode trazer aquele trem ali para mim?) ou comida (v.g., Estou com vontade de comer um trem doce hoje).

 

        Fato é que no falar mineiro a palavra  trem é polissêmica e não guarda, necessariamente, correspondência com o trem de ferro, que chegou às Minas somente na segunda metade do século XIX, quando nosso vocabulário já estava bastante sedimentado.

Em nossas pesquisas fomos buscar o seu significado em um dicionário português publicado em Lisboa no ano de 1789[5], onde aparece o verbete “trem” com o significado de “a bagagem que acompanha alguém de jornada”. 

Também descobrimos um documento escrito por volta de 1750 pelo bandeirante Bento Fernandes Furtado em que ele narra a chegada, na região de Ouro Preto,  dos  primeiros aventureiros  em busca do ouro, afirmando que a maior parte deles eram pobres e  vinham sós, "com o seu limitado trem às costas"6, o que demonstra o uso da palavra "trem" nas Minas desde a sua descoberta.

Ou seja,  trem, para os antigos portugueses, compreendia todas as coisas que eram levadas na bagagem dos viajantes (o que, aparentemente,  inclusive explica o uso da expressão  "trenheira" pelos mineiros, com o significado de “montoeira de coisas”).

                              Bandeirante com um trem a tiracolo

Assim, descoberta sua origem, fica explicado etimologicamente que trem significa coisa, ou seja, quase tudo o que existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea, o que justifica a sua larga utilização.

Depreende-se de tais assertivas que, longe de serem expressões caipiras ou incultas cunhadas em tempos recentes, as tradicionais e singulares palavras uai, ué trem possuem suas origens nos antigos falares portugueses, o que demonstra que os mineiros souberam preservar, de forma particular,  a autenticidade das heranças linguísticas recebidas de seus ancestrais e que hoje  podem ser consideradas integrantes do patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais.



[1] MOTA, Carlos. Dicionário Fanadês, Jequitinhonhês e Mineirês.  Stephanie. 2008. ARAÚJO, Pedro. Dicionário de Mineirês. Belo Horizonte: Tumate Cru. 2024. FERNANDES, Elmo. Dicionário Mineirês Descomplicado. 2024.

[2] ALBUQUERQUE, Iara Maria Barbosa Lages. Hipóteses sobre a origem de uma expressão.  In: RAMOS, Jânia M. COELHO, Sueli Maria (Org.). Português brasileiro dialetal: temas gramaticais. Campinas: Mercado de Letras. 2013. p. 11-19.

[3] Em tupi-guarani, “gwaimi” quer dizer “velha” e “i” final significa “rio”.

[4] BARCELOS, J. M. Soares de. Dicionário de Falares dos Açores.  Vocabulário regional de todas as ilhas. Coimbra: Almedina. 2008. p. 567.

[5] Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau / reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. - Lisboa: na officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 

[6] MATOSO, Caetano da Costa.  Códice Costa Matoso.  Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro.  1999. Vol. I, p. 185.


3 comentários:

  1. Ah, e parabéns pela pesquisa. Se "uai" era usado nos Açores com sentido similar ao atual, a dúvida sobre a origem está totalmente esclarecida.

    ResponderExcluir
  2. Quanto ao vocábulo "trem", meu pai especulava que poderia vir de "terém", se referenciando a objeto de pouco valor, ou traste. Fica aí a sugestão para avaliação!

    ResponderExcluir

UAI, UÉ ! DE ONDE QUE O TREM É ? - Possíveis origens históricas de alguns falares mineiros

  Por: Marcos Paulo de Souza Miranda                 - Uai, que trem bão é esse ?             - Ué, é queijo, sô!   Um colóquio de conteúdo...