sábado, 14 de abril de 2018

BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O ANTIGO USO DE VALOS PARA A DEMARCAÇÃO DE DIVISAS ENTRE PROPRIEDADES EM MINAS GERAIS




Marcos Paulo de Souza Miranda
Membro do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas do Alto Rio Grande
e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais

E de que vivia ? Plantava sua roça, colhia: - “A gente planta milho, arroz, feijão, bananeira, abobra, mandioca, mendobí, batata-dôce, melancia...” Roça em terra geradora, ali perto, sem possessão de ninguém, chão de cal, dava de tudo. Que ele tinha sido valeiro, de profissão, em outros tempos... – emendava baixinho Pedro Orósio. Abria valos divisórios. Trabalhava e era pago por varas: preço por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos. – “Fechei!” – ele mesmo dizia. Contavam que ainda tinha guardado bom dinheiro, enterrado, por isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas e quarentas, moedões de cobre zinhavral. Com a mudança dos usos, agora se fazia era cerca-de-arame, ninguém queria valos mais; ele teve de mudar de rumo de vida.
João Guimarães Rosa. O Recado do Morro.
1.       Os antigos valos

Durante os séculos XVIII e XIX os valos[1] (trincheiras lineares em forma de “U” cavadas na terra, com cerca de 1,5 m de profundidade e até 3,0 m de largura) foram amplamente utilizados em Minas Gerais, juntamente com o uso de muros de pedra em junta seca e cercas de madeira,  principalmente para demarcação de divisas entre propriedades e delimitação de caminhos utilizados para  a condução de bois e porcos.
                O uso de valos era uma alternativa relativamente econômica naqueles tempos, uma vez que a sua construção demandava apenas a disponibilidade de mão-de-obra (farta na época da escravidão) e ferramentas simples, como enxadas, pás e picaretas.
                Os valos eram estruturas de grande importância para o estabelecimento de segurança jurídica em relação às divisas de propriedades e eles aparecem, com frequência, citados em contendas judiciais ou mesmo em atos normativos da época.
                Podemos citar, a título de exemplo,  a petição datada de 23/12/1752 em que Aires Dornelas, Manuel Martins de Carvalho, Custódio de Oliveira Magalhães e outros moradores do Arraial de Casa Branca, Vila Rica (atual Distrito de Glaura), requerendo que fosse preso João Pacheco de Melo em razão da abertura e modificação de valos que fez na região, causando prejuízos aos moradores e à estrada pública[2].
                A utilização de valos em Minas Gerais no período colonial, apesar de estar dispersa por todo o território, era predominante na antiga Comarca do Rio das Mortes, sediada em São João del-Rei, que açambarcava as atuais regiões do Campo das Vertentes, Sul de Minas e Zona da Mata. É que a Comarca do Rio das Mortes era a maior responsável pela produção de alimentos para abastecimento, não só de Minas, mas também do Rio de Janeiro, com enorme plantel de gado vacum para produção de carne e leite, o que exigia a utilização dos valos para confinamento dos animais e mesmo para a sua condução ao longo dos caminhos.
                Sobre o tema, já se escreveu:
O emprego de obras divisórias é segundo Caio Prado Júnior, o que mais diferencia a pecuária do sul de Minas da criação do Brasil oitocentista. Trata-se de um sistema criatório inteiramente diverso dos habituais para aquela época. A construção de cercas de pau-a-pique, valos ou extensos muros de pedra não só delimita os pastos de acordo com os diferentes estágios de crescimento do capim, como também permite a distribuição do gado de acordo com o sexo. Lançando mão desses recursos, os criadores conseguem melhor controle da alimentação, cobertura e desenvolvimento dos animais, obtendo um rebanho de nível superior.[3]
                Auguste de Saint-Hilaire[4] registrou sobre a região do Rio Grande, na  Capitania de Minas:
 como acontece em todo o resto do brasil que percorri, na região do rio grande não se sabe o que é um estábulo. todavia, os animais não ficam entregues a si mesmos, como ocorre no sertão. Os fazendeiros que se dedicam à escala maior à criação de gado dividem suas pastagens em várias partes, por meio de fossos, seja com paliçadas que tenham pelo menos a altura de um homem,
 Quanto à área urbana, pela Resolução nº 224, de 14 de abril de 1841, o Governador da Província de Minas Gerais, com o objetivo de evitar demandas, determinou que os proprietários de terrenos no Município de Santa Bárbara poderiam obrigar os seus confinantes a fecharem a metade de suas testadas por valos, cercas artificiais ou nativas, ou por muros. O requerimento poderia ser feito ao Juiz de Paz, que determinaria a notificação para que o vizinho estabelecesse o limite a partir do prazo de quinze dias.[5]

2.       Os valeiros

A necessidade da construção de valos nas antigas propriedades mineiras era tamanha que houve a formação de uma categoria profissional especializada no assunto: os valeiros, detentores de saberes e técnicas específicas para construir os valos com agilidade e qualidade, a fim de que tivessem longa durabilidade. Ângulos de abertura específicos nas paredes laterais dos valos, complemento com muros de arrimo de pedra em locais de instabilidade, e abertura das estruturas em épocas próprias do ano, quando a terra estava mais macia, eram alguns dos elementos do “saber fazer” próprio dos antigos valeiros.
                A título de confirmação da assertiva relacionada à existência da categoria, registramos, por exemplo,  no censo de 1831 realizado  no Distrito de Nossa Senhora de Nazaré, Freguesia de N.S. Conceição da Barra, Termo de São João del-Rei (atual Nazareno)  a presença de:  216 - Francisco Leite, chefe do fogo, preto, 40, solteiro, valeiro.[6]  No mesmo ano, figura no censo  da Capela da Mutuca, da freguesia de Campanha do Rio Verde (atual Elói Mendes): 159 -  Felix, 36 anos, crioulo, solteiro, escravo, valeiro; Honório, 28 anos, crioulo, solteiro, escravo, valeiro[7].
No ano de 1839, no censo do Distrito da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Termo da Vila de Santa Maria de Baependi (atual Carmo de Minas), encontramos: 88 - Felipe Mariano, pardo, 29, casado, valeiro; 89 - Bento Jose Correa, pardo, 42, casado, valeiro;  90 - Gonçalo de Toledo, branco, 45, casado, valeiro[8].
Em 1840, no censo do Distrito da Madre de Deus, filial da freguesia de São Miguel do Cajuru, encontramos: 19 - Joaquim Jose dos Santos, Branco, 55, casado, valeiro, não sabe ler.[9]

3.       A decadência da utilização dos valos

O advento da abolição da escravatura no Brasil (1888) e a invenção do arame farpado nos Estados Unidos (1874), com o início de sua importação pelo Brasil em 1913 e a criação da primeira fábrica do produto em 1940 (Belgo, João Monlevade - MG), foram fatores que certamente contribuíram para  diminuir drasticamente a antiga e tradicional metodologia de abertura de valos nas Minas Gerais.
                Vale ressaltar que na década de 1920 o Governo de Minas Gerais subvencionava a aquisição de arame farpado para proprietários rurais, incentivando, pois, o abandono do antigo modo de se estabelecer divisas por meio de valos.
No Relatório da Governadoria do Estado, de 1921, constava como medida adotada para incentivar a produção pastoril[10]:
A Secretaria da Agricultura resolveu adquirir, pelo menor preço possível, aos importadores, partidas de arame farpado com os respectivos grampos para construção dos tapumes rurais, cuja deficiência ou inferioridade não permitem combinar com vantagem a agricultura com a pecuária.
Esse arame é fornecido aso lavradores e criadores pelo custo e sem frete até o lugar do destino.
Tamanha a aceitação e saída do arame farpado a partir de então, que, naquela década, já encontramos anúncios de casas comerciais disponibilizando o produto em cidades como Bocaiuva, no Norte de Minas (1924)[11], e em Queluz, atual Conselheiro Lafaiete, na região Central (1929)[12], conforme propagandas veiculadas nos periódicos abaixo.
Não se mostrava mais conveniente e economicamente vantajosa a construção de valos. A abertura das estruturas, a partir de então, foram, pouco a pouco, sendo relegadas ao esquecimento, com a consequente perda do saber fazer dos antigos valeiros.
Em razão dessa perda cada vez mais acentuada do conhecimento associado à produção dos valos (aspecto imaterial), mais se justifica a conservação in situ das antigas estruturas denominadas “valados”, como marcas temporais de um determinado jeito de viver e uma forma de fazer (aspecto imaterial).
Por se tratar de uma tecnologia de origem europeia, ou seja, trazida para o país após o descobrimento, os vestígios materiais dos valos podem ser contextualizados como vestígios arqueológicos históricos.
Em nosso país os sítios arqueológicos históricos são compostos de vestígios materiais resultantes da produção humana a partir da colonização européia, passíveis de investigação por métodos e técnicas fornecidos pela arqueologia.
A diferença entre a arqueologia pré-histórica e a histórica reside, basicamente, na natureza das fontes utilizadas para as pesquisas, pois os arqueólogos que trabalham com períodos históricos utilizam, também, documentos escritos para subsidiar suas análises e conclusões.[13]
A arqueologia histórica é considerada a disciplina científica que utiliza restos materiais para compreender o funcionamento das sociedades humanas específicas e da cultura em geral, o que a torna válida para o entendimento de qualquer sistema comportamental passado, valendo-se de métodos e técnicas que lhe são próprias.[14]
São exemplos de sítios arqueológicos históricos encontrados no Brasil[15]:
a)                      Estruturas, ruínas e edificações construídas com o objetivo de defesa ou ocupação (buracos, baterias militares, fortalezas e fortins);
b)                      Vestígios da infraestrutura (vias, ruas, caminhos, calçadas, ruelas, praças, sistema de  esgotamento de  água e esgotos, galerias, poços, aquedutos, fundações remanescentes das mais diversas edificações);
c)                       Lugares e locais onde possam ser identificados remanescentes de batalhas históricas e quaisquer outras dimensões e combates;
d)                      Antigos cemitérios, quintais, jardins, pátios e heras;
e)                      Estruturas remanescentes de antigas fazendas, senzalas e engenhos de cana e farinha;
f)                                      Estruturas remanescentes de processos  industriais e manufatureiros;
g)                      Vestígios, estruturas e outros bens que possam contribuir na compreensão da memória nacional pós-contato.
A aplicação da arqueologia histórica para a interpretação desses sítios é de enorme importância, pois ela pode produzir conhecimentos de relevo sobre os diversos povos formadores da nação brasileira, tais como:  grupos indígenas influenciados por colonizadores;  núcleos de escravos e quilombolas;  comunidades de tradição européia, comerciantes, mineradores, criadores de gado, além de fornecer elementos necessários para se proceder a restaurações e reconstituições fiéis dos monumentos históricos acerca dos quais os documentos sejam inexistentes ou de difícil interpretação.[16]
Daí, a evidente necessidade de se preservar tais bens culturais.

4.       Os valos como vestígios arqueológicos protegidos

Os valos, enquanto produções humanas realizadas em tempos remotos (sobretudo, séculos XVIII e XIX), reúnem as características w os elementos necessários para serem considerados vestígios arqueológicos históricos.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988  em seu art. 20, X, dispõe que constituem patrimônio da União “os sítios arqueológicos e pré-históricos”. No art. 23, III, é dito que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”.  Segundo o art. 216, V, constituem patrimônio cultural brasileiro, dentre outros bens, “os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”, incumbindo ao  Poder Público, com a colaboração da comunidade, o dever de promovê-los e protegê-los.
Veja-se que para além dos sítios pré-históricos (que detém vestígios de produções humanas pré-cabralinas) a Constituição Brasileira assegura expressa proteção, indistintamente, a todos os sítios arqueológicos (lato sensu), entre os quais se encontram os sítios arqueológicos históricos (que detém vestígios de produção humana no período pós-descobrimento).
Nesse sentido, extrai-se da própria Lex Magna brasileira, pináculo do ordenamento jurídico nacional, que os sítios arqueológicos e pré-históricos estão sujeitos a um regime jurídico protetivo especial, que os qualifica como bens públicos (sob o aspecto da dominialidade) e de interesse público (sob o aspecto da gestão e conservação), razão pela qual ficam subordinados a um peculiar regime de polícia, de intervenção e de tutela pública[17], objetivando evitar, sobretudo,  a sua degradação, abandono, destruição, evasão ou uso inadequado.
Segundo a Carta de Laussane para a Proteção e Gestão do Patrimônio Arqueológico (ICOMOS, 1990), o patrimônio arqueológico é um recurso natural frágil e não renovável, razão pela qual a proteção dos bens de valor para a arqueologia constitui obrigação moral de todo ser humano e constitui também responsabilidade pública coletiva, que deve traduzir-se na adoção de uma legislação adequada que proíba a destruição, degradação ou alteração de qualquer monumento, sítio arqueológico ou seu entorno, sem a anuência das instâncias competentes, prevendo-se a aplicação de sanções adequadas aos degradadores desses bens.
Por isso, afirma-se que, de direito, o patrimônio arqueológico constitui legado das gerações do passado, representada pelos vários segmentos formadores da sociedade nacional e a geração presente não pode interromper este legado às gerações futuras[18].
Em razão da preocupação internacional com a efetiva proteção e adequada gestão do patrimônio arqueológico, a Carta de Laussane (ICOMOS, 1990) apregoa, dentre outras coisas, que:

a)                      A legislação deve garantir a conservação do patrimônio arqueológico em função das necessidades da história e das tradições de cada país e de cada região, dando especial relevo à conservação "in situ" e aos imperativos da investigação.
b)                      A legislação deve assentar na ideia de que o patrimônio arqueológico é uma herança de toda a humanidade e de grupos humanos, e não de pessoas individuais ou de nações em particular.
c)                       A legislação deve impedir qualquer destruição, degradação ou alteração através da modificação de qualquer monumento, sitio arqueológico ou da sua envolvência, sem que exista acordo dos serviços arqueológicos competentes.
d)                      A legislação deve exigir, como princípio, uma investigação prévia e o estabelecimento de uma documentação arqueológica completa nos casos em que uma destruição do patrimônio arqueológico possa ter sido autorizada.
e)                      A legislação deve exigir uma manutenção correta e uma gestão e conservação satisfatórias do patrimônio arqueológico, garantindo os meios necessários.
f)                                     Às infrações à legislação do patrimônio arqueológico devem corresponder adequadas sanções legais.

5.       Ameaças aos valos

Os antigos valos estão expostos a riscos permanentes de destruição, sobretudo em decorrência de implantação de empreendimentos com grande potencial de alteração do uso do  solo, como demonstrado na tabela abaixo.

Principais atividades degradadoras das estruturas de valos
Abertura de rodovias e ferrovias
Implantação de gasodutos, minerodutos e eletrodutos
Atividades minerárias
Implantação de barragens
Parcelamento do solo
Silvicultura
Atividades agrícolas

6.       Conclusões
Os antigos valos de divisas são vestígios materiais importantes decorrentes da atuação humana em tempos passados. Eles reúnem as características necessárias para que sejam enquadrados como patrimônio arqueológico histórico do país, submetidos a especial regime protetivo (Lei 3.924/1961).
Sob a ótica da história, a preservação e interpretação dos valos mostram-se como de grande relevância para a compreensão e identificação de antigas propriedades rurais ou urbanas, delimitações de caminhos, de datas minerais etc.
Quanto ao patrimônio imaterial, é de fundamental importância estudos mais aprofundados sobre o “saber fazer” relacionado à construção dos valos, a fim de resgatar e resguardar esse conhecimento em extinção.


[1] Do latim vallu = trincheira.
[2] APM - CMOP Cx. 28 Doc. 63
[3] A História do cavalo Mangalarga Marchador.  Nova Fronteira.p. 20.
[4] Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte. Itatiaia.p. 50-51.
[5] APM - LM-0256
[6] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1831NazareMG.pdf - Documento: MP cx 6 doc20 - Arquivo Publico Mineiro
[8] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1839CarmodeBaependMG.pdf - PP 1/10 doc 7 cx 2 fls 97 e seguintes Arquivo Publico Mineiro
[9] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1840MadredeDeusMG.pdf - Mapa de População - cx 06 doc 9 - Arquivo Publico Mineiro
[13] NAJJAR, Rosana. p. 16
[14] MEDEIROS, João Cabral de. Cultura Material antes da escrita como evidência documental. p. 47.
[15] BASTOS, Rossano L.  2008, p. 47.
[16] PROUS, André. p. 543.
[17] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. p. 83. A Lei  6.513/77 (art. 1º, I) também considera  os sítios arqueológicos e pré-históricos  como bens de interesse turístico.
[18]  FOGOLARI, Everson Paulo. Conhecimento Científico e Patrimônio Cultural. p. 26.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

UAI, UÉ ! DE ONDE QUE O TREM É ? - Possíveis origens históricas de alguns falares mineiros

  Por: Marcos Paulo de Souza Miranda                 - Uai, que trem bão é esse ?             - Ué, é queijo, sô!   Um colóquio de conteúdo...