Marcos Paulo de Souza
Miranda
Membro do Núcleo de Pesquisas
Arqueológicas do Alto Rio Grande
e do Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais
E de que vivia ? Plantava sua roça, colhia: - “A gente
planta milho, arroz, feijão, bananeira, abobra, mandioca, mendobí, batata-dôce,
melancia...” Roça em terra geradora, ali perto, sem possessão de ninguém, chão
de cal, dava de tudo. Que ele tinha sido valeiro, de profissão, em outros
tempos... – emendava baixinho Pedro Orósio. Abria valos divisórios. Trabalhava
e era pago por varas: preço por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares
todos. – “Fechei!” – ele mesmo dizia. Contavam que ainda tinha guardado bom
dinheiro, enterrado, por isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas e
quarentas, moedões de cobre zinhavral. Com a mudança dos usos, agora se fazia
era cerca-de-arame, ninguém queria valos mais; ele teve de mudar de rumo de
vida.
João
Guimarães Rosa. O Recado do Morro.
1.
Os
antigos valos
Durante os
séculos XVIII e XIX os valos[1]
(trincheiras lineares em forma de “U” cavadas na terra, com cerca de 1,5 m de
profundidade e até 3,0 m de largura) foram amplamente utilizados em Minas
Gerais, juntamente com o uso de muros de pedra em junta seca e cercas de
madeira, principalmente para demarcação
de divisas entre propriedades e delimitação de caminhos utilizados para a condução de bois e porcos.
O
uso de valos era uma alternativa relativamente econômica naqueles tempos, uma
vez que a sua construção demandava apenas a disponibilidade de mão-de-obra
(farta na época da escravidão) e ferramentas simples, como enxadas, pás e
picaretas.
Os
valos eram estruturas de grande importância para o estabelecimento de segurança
jurídica em relação às divisas de propriedades e eles aparecem, com frequência,
citados em contendas judiciais ou mesmo em atos normativos da época.
Podemos
citar, a título de exemplo, a petição
datada de 23/12/1752 em que Aires Dornelas, Manuel Martins de Carvalho,
Custódio de Oliveira Magalhães e outros moradores do Arraial de Casa Branca,
Vila Rica (atual Distrito de Glaura), requerendo que fosse preso João Pacheco
de Melo em razão da abertura e modificação de valos que fez na região, causando
prejuízos aos moradores e à estrada pública[2].
A
utilização de valos em Minas Gerais no período colonial, apesar de estar
dispersa por todo o território, era predominante na antiga Comarca do Rio das
Mortes, sediada em São João del-Rei, que açambarcava as atuais regiões do Campo
das Vertentes, Sul de Minas e Zona da Mata. É que a Comarca do Rio das Mortes
era a maior responsável pela produção de alimentos para abastecimento, não só
de Minas, mas também do Rio de Janeiro, com enorme plantel de gado vacum para
produção de carne e leite, o que exigia a utilização dos valos para
confinamento dos animais e mesmo para a sua condução ao longo dos caminhos.
Sobre
o tema, já se escreveu:
O emprego de obras divisórias é segundo Caio
Prado Júnior, o que mais diferencia a pecuária do sul de Minas da criação do
Brasil oitocentista. Trata-se de um sistema criatório inteiramente diverso dos
habituais para aquela época. A construção de cercas de pau-a-pique, valos ou
extensos muros de pedra não só delimita os pastos de acordo com os diferentes
estágios de crescimento do capim, como também permite a distribuição do gado de
acordo com o sexo. Lançando mão desses recursos, os criadores conseguem melhor
controle da alimentação, cobertura e desenvolvimento dos animais, obtendo um
rebanho de nível superior.[3]
como
acontece em todo o resto do brasil que percorri, na região do rio grande não se
sabe o que é um estábulo. todavia, os animais não ficam entregues a si mesmos,
como ocorre no sertão. Os fazendeiros que se dedicam à escala maior à criação
de gado dividem suas pastagens em várias partes, por meio de fossos, seja com
paliçadas que tenham pelo menos a altura de um homem,
Quanto à área urbana, pela Resolução nº 224,
de 14 de abril de 1841, o Governador da Província de Minas Gerais, com o
objetivo de evitar demandas, determinou que os proprietários de terrenos no
Município de Santa Bárbara poderiam obrigar os seus confinantes a fecharem a
metade de suas testadas por valos, cercas artificiais ou nativas, ou por muros.
O requerimento poderia ser feito ao Juiz de Paz, que determinaria a notificação
para que o vizinho estabelecesse o limite a partir do prazo de quinze dias.[5]
2.
Os
valeiros
A necessidade
da construção de valos nas antigas propriedades mineiras era tamanha que houve
a formação de uma categoria profissional especializada no assunto: os valeiros,
detentores de saberes e técnicas específicas para construir os valos com
agilidade e qualidade, a fim de que tivessem longa durabilidade. Ângulos de
abertura específicos nas paredes laterais dos valos, complemento com muros de
arrimo de pedra em locais de instabilidade, e abertura das estruturas em épocas
próprias do ano, quando a terra estava mais macia, eram alguns dos elementos do
“saber fazer” próprio dos antigos valeiros.
A
título de confirmação da assertiva relacionada à existência da categoria,
registramos, por exemplo, no censo de
1831 realizado no Distrito de Nossa
Senhora de Nazaré, Freguesia de N.S. Conceição da Barra, Termo de São João del-Rei
(atual Nazareno) a presença de: 216 - Francisco
Leite, chefe do fogo, preto, 40, solteiro, valeiro.[6]
No mesmo ano, figura no censo da
Capela da Mutuca, da freguesia de Campanha do Rio Verde (atual Elói Mendes): 159 -
Felix, 36 anos, crioulo, solteiro, escravo, valeiro; Honório, 28 anos,
crioulo, solteiro, escravo, valeiro[7].
No ano de
1839, no censo do Distrito da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Termo da
Vila de Santa Maria de Baependi (atual Carmo de Minas), encontramos: 88 - Felipe Mariano, pardo, 29, casado,
valeiro; 89 - Bento Jose Correa, pardo, 42, casado, valeiro; 90 - Gonçalo de Toledo, branco, 45, casado,
valeiro[8].
Em 1840, no
censo do Distrito da Madre de Deus, filial da freguesia de São Miguel do
Cajuru, encontramos: 19 - Joaquim Jose
dos Santos, Branco, 55, casado, valeiro, não sabe ler.[9]
3.
A
decadência da utilização dos valos
O advento da
abolição da escravatura no Brasil (1888) e a invenção do arame farpado nos
Estados Unidos (1874), com o início de sua importação pelo Brasil em 1913 e a
criação da primeira fábrica do produto em 1940 (Belgo, João Monlevade - MG), foram
fatores que certamente contribuíram para
diminuir drasticamente a antiga e tradicional metodologia de abertura de
valos nas Minas Gerais.
Vale
ressaltar que na década de 1920 o Governo de Minas Gerais subvencionava a
aquisição de arame farpado para proprietários rurais, incentivando, pois, o
abandono do antigo modo de se estabelecer divisas por meio de valos.
No Relatório
da Governadoria do Estado, de 1921, constava como medida adotada para
incentivar a produção pastoril[10]:
A Secretaria da Agricultura resolveu
adquirir, pelo menor preço possível, aos importadores, partidas de arame
farpado com os respectivos grampos para construção dos tapumes rurais, cuja
deficiência ou inferioridade não permitem combinar com vantagem a agricultura
com a pecuária.
Esse arame é fornecido aso lavradores e
criadores pelo custo e sem frete até o lugar do destino.
Tamanha a
aceitação e saída do arame farpado a partir de então, que, naquela década, já
encontramos anúncios de casas comerciais disponibilizando o produto em cidades
como Bocaiuva, no Norte de Minas (1924)[11],
e em Queluz, atual Conselheiro Lafaiete, na região Central (1929)[12],
conforme propagandas veiculadas nos periódicos abaixo.
Não se
mostrava mais conveniente e economicamente vantajosa a construção de valos. A abertura
das estruturas, a partir de então, foram, pouco a pouco, sendo relegadas ao
esquecimento, com a consequente perda do saber fazer dos antigos valeiros.
Em razão dessa
perda cada vez mais acentuada do conhecimento associado à produção dos valos
(aspecto imaterial), mais se justifica a conservação in situ das antigas
estruturas denominadas “valados”, como marcas temporais de um determinado jeito
de viver e uma forma de fazer (aspecto imaterial).
Por se tratar de uma tecnologia de
origem europeia, ou seja, trazida para o país após o descobrimento, os
vestígios materiais dos valos podem ser contextualizados como vestígios
arqueológicos históricos.
Em nosso país os sítios arqueológicos
históricos são compostos de vestígios materiais resultantes da produção humana
a partir da colonização européia, passíveis de investigação por métodos e
técnicas fornecidos pela arqueologia.
A diferença entre a arqueologia
pré-histórica e a histórica reside, basicamente, na natureza das fontes
utilizadas para as pesquisas, pois os arqueólogos que trabalham com períodos
históricos utilizam, também, documentos escritos para subsidiar suas análises e
conclusões.[13]
A arqueologia histórica é considerada a
disciplina científica que utiliza restos materiais para compreender o
funcionamento das sociedades humanas específicas e da cultura em geral, o que a
torna válida para o entendimento de qualquer sistema comportamental passado,
valendo-se de métodos e técnicas que lhe são próprias.[14]
São exemplos de sítios arqueológicos
históricos encontrados no Brasil[15]:
a)
Estruturas,
ruínas e edificações construídas com o objetivo de defesa ou ocupação (buracos,
baterias militares, fortalezas e fortins);
b)
Vestígios
da infraestrutura (vias, ruas, caminhos, calçadas, ruelas, praças, sistema
de esgotamento de água e esgotos, galerias, poços, aquedutos,
fundações remanescentes das mais diversas edificações);
c)
Lugares
e locais onde possam ser identificados remanescentes de batalhas históricas e
quaisquer outras dimensões e combates;
d)
Antigos
cemitérios, quintais, jardins, pátios e heras;
e)
Estruturas
remanescentes de antigas fazendas, senzalas e engenhos de cana e farinha;
f)
Estruturas remanescentes de
processos industriais e manufatureiros;
g)
Vestígios,
estruturas e outros bens que possam contribuir na compreensão da memória
nacional pós-contato.
A aplicação da arqueologia histórica
para a interpretação desses sítios é de enorme importância, pois ela pode
produzir conhecimentos de relevo sobre os diversos povos formadores da nação
brasileira, tais como: grupos indígenas
influenciados por colonizadores; núcleos
de escravos e quilombolas; comunidades
de tradição européia, comerciantes, mineradores, criadores de gado, além de
fornecer elementos necessários para se proceder a restaurações e
reconstituições fiéis dos monumentos históricos acerca dos quais os documentos
sejam inexistentes ou de difícil interpretação.[16]
Daí, a evidente necessidade de se
preservar tais bens culturais.
4.
Os valos
como vestígios arqueológicos protegidos
Os valos,
enquanto produções humanas realizadas em tempos remotos (sobretudo, séculos
XVIII e XIX), reúnem as características w os elementos necessários para serem
considerados vestígios arqueológicos históricos.
No Brasil, a Constituição Federal de
1988 em seu art. 20, X, dispõe que
constituem patrimônio da União “os sítios arqueológicos e pré-históricos”. No
art. 23, III, é dito que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios “proteger os documentos, as obras e
outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”. Segundo o art. 216, V, constituem patrimônio
cultural brasileiro, dentre outros bens, “os sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”,
incumbindo ao
Poder Público, com a colaboração da comunidade, o dever de promovê-los e
protegê-los.
Veja-se que para além dos sítios
pré-históricos (que detém vestígios de produções humanas pré-cabralinas) a
Constituição Brasileira assegura expressa proteção, indistintamente, a todos os
sítios arqueológicos (lato sensu),
entre os quais se encontram os sítios arqueológicos históricos (que detém
vestígios de produção humana no período pós-descobrimento).
Nesse sentido, extrai-se da própria Lex Magna brasileira, pináculo do
ordenamento jurídico nacional, que os sítios arqueológicos e pré-históricos
estão sujeitos a um regime jurídico protetivo especial, que os qualifica como
bens públicos (sob o aspecto da dominialidade) e de interesse público (sob o
aspecto da gestão e conservação), razão pela qual ficam subordinados a um
peculiar regime de polícia, de intervenção e de tutela pública[17], objetivando evitar, sobretudo, a sua degradação, abandono, destruição,
evasão ou uso inadequado.
Segundo a Carta de Laussane para a Proteção e Gestão
do Patrimônio Arqueológico (ICOMOS, 1990), o patrimônio arqueológico é um
recurso natural frágil e não renovável, razão pela qual a proteção dos bens de
valor para a arqueologia constitui obrigação moral de todo ser humano e
constitui também responsabilidade pública coletiva, que deve traduzir-se na
adoção de uma legislação adequada que proíba a destruição, degradação ou
alteração de qualquer monumento, sítio arqueológico ou seu entorno, sem a
anuência das instâncias competentes, prevendo-se a aplicação de sanções
adequadas aos degradadores desses bens.
Por isso, afirma-se que, de direito, o
patrimônio arqueológico constitui legado das gerações do passado, representada
pelos vários segmentos formadores da sociedade nacional e a geração presente
não pode interromper este legado às gerações futuras[18].
Em razão da preocupação internacional com a efetiva proteção
e adequada gestão do patrimônio arqueológico, a Carta de Laussane (ICOMOS,
1990) apregoa, dentre outras coisas, que:
a)
A
legislação deve garantir a conservação do patrimônio arqueológico em função das
necessidades da história e das tradições de cada país e de cada região, dando
especial relevo à conservação "in situ" e aos imperativos da
investigação.
b)
A
legislação deve assentar na ideia de que o patrimônio arqueológico é uma
herança de toda a humanidade e de grupos humanos, e não de pessoas individuais
ou de nações em particular.
c)
A
legislação deve impedir qualquer destruição, degradação ou alteração através da
modificação de qualquer monumento, sitio arqueológico ou da sua envolvência,
sem que exista acordo dos serviços arqueológicos competentes.
d)
A
legislação deve exigir, como princípio, uma investigação prévia e o
estabelecimento de uma documentação arqueológica completa nos casos em que uma
destruição do patrimônio arqueológico possa ter sido autorizada.
e)
A legislação
deve exigir uma manutenção correta e uma gestão e conservação satisfatórias do
patrimônio arqueológico, garantindo os meios necessários.
f)
Às infrações à legislação do
patrimônio arqueológico devem corresponder adequadas sanções legais.
5.
Ameaças
aos valos
Os antigos
valos estão expostos a riscos permanentes de destruição, sobretudo em
decorrência de implantação de empreendimentos com grande potencial de alteração
do uso do solo, como demonstrado na
tabela abaixo.
Principais
atividades degradadoras das estruturas de valos
|
Abertura
de rodovias e ferrovias
|
Implantação
de gasodutos, minerodutos e eletrodutos
|
Atividades
minerárias
|
Implantação
de barragens
|
Parcelamento
do solo
|
Silvicultura
|
Atividades
agrícolas
|
6.
Conclusões
Os antigos
valos de divisas são vestígios materiais importantes decorrentes da atuação
humana em tempos passados. Eles reúnem as características necessárias para que
sejam enquadrados como patrimônio arqueológico histórico do país, submetidos a
especial regime protetivo (Lei 3.924/1961).
Sob a ótica da
história, a preservação e interpretação dos valos mostram-se como de grande
relevância para a compreensão e identificação de antigas propriedades rurais ou
urbanas, delimitações de caminhos, de datas minerais etc.
Quanto ao
patrimônio imaterial, é de fundamental importância estudos mais aprofundados
sobre o “saber fazer” relacionado à construção dos valos, a fim de resgatar e resguardar
esse conhecimento em extinção.
[1] Do latim vallu =
trincheira.
[2] APM - CMOP Cx. 28 Doc. 63
[3] A
História do cavalo Mangalarga Marchador.
Nova Fronteira.p. 20.
[4]
Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte. Itatiaia.p. 50-51.
[5] APM - LM-0256
[6] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1831NazareMG.pdf - Documento: MP cx 6 doc20 - Arquivo Publico Mineiro
[8] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1839CarmodeBaependMG.pdf - PP 1/10 doc 7 cx 2 fls 97 e seguintes Arquivo
Publico Mineiro
[9] http://www.projetocompartilhar.org/Censos/1840MadredeDeusMG.pdf - Mapa de População - cx 06 doc 9 - Arquivo Publico
Mineiro
[13] NAJJAR,
Rosana. p. 16
[14] MEDEIROS,
João Cabral de. Cultura Material antes da escrita como evidência documental. p.
47.
[15] BASTOS,
Rossano L. 2008, p. 47.
[16] PROUS,
André. p. 543.
[17] SILVA,
José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. p. 83. A Lei
6.513/77 (art. 1º, I) também considera
os sítios arqueológicos e
pré-históricos como bens de
interesse turístico.
[18] FOGOLARI, Everson Paulo. Conhecimento
Científico e Patrimônio Cultural. p. 26.
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